9/03/2006

Aula

Aula de Inglês
Autor: Rubem Braga

— Is this an elephant?
Minha tendência imediata foi responder que não; mas a gente não deve se deixar levar pelo primeiro
impulso. Um rápido olhar que lancei à professora bastou para ver que ela falava com seriedade, e tinha o
ar de quem propõe um grave problema. Em vista disso, examinei com a maior atenção o objeto que ela me
apresentava.
Não tinha nenhuma tromba visível, de onde uma pessoa leviana poderia concluir às pressas que não se
tratava de um elefante. Mas se tirarmos a tromba a um elefante, nem por isso deixa ele de ser um elefante;
mesmo que morra em conseqüência da brutal operação, continua a ser um elefante; continua, pois um
elefante morto é, em princípio, tão elefante como qualquer outro. Refletindo nisso, lembrei-me de
averiguar se aquilo tinha quatro patas, quatro grossas patas, como costumam ter os elefantes. Não tinha.
Tampouco consegui descobrir o pequeno rabo que caracteriza o grande animal e que, às vezes, como já
notei em um circo, ele costuma abanar com uma graça infantil.
Terminadas as minhas observações, voltei-me para a professora e disse convincentemente:
— No, it's not!
Ela soltou um pequeno suspiro, satisfeita: a demora de minha resposta a havia deixado apreensiva.
Imediatamente perguntou:
— Is it a book?
Sorri da pergunta: tenho vivido uma parte de minha vida no meio de livros, conheço livros, lido com
livros, sou capaz de distinguir um livro a primeira vista no meio de quaisquer outros objetos, sejam eles
garrafas, tijolos ou cerejas maduras — sejam quais forem. Aquilo não era um livro, e mesmo supondo que
houvesse livros encadernados em louça, aquilo não seria um deles: não parecia de modo algum um livro.
Minha resposta demorou no máximo dois segundos:
— No, it's not!
Tive o prazer de vê-la novamente satisfeita — mas só por alguns segundos. Aquela mulher era um desses
espíritos insaciáveis que estão sempre a se propor questões, e se debruçam com uma curiosidade aflita
sobre a natureza das coisas.
— Is it a handkerchief?
Fiquei muito perturbado com essa pergunta. Para dizer a verdade, não sabia o que poderia ser um
handkerchief; talvez fosse hipoteca... Não, hipoteca não. Por que haveria de ser hipoteca? Handkerchief!
Era uma palavra sem a menor sombra de dúvida antipática; talvez fosse chefe de serviço ou relógio de
pulso ou ainda, e muito provavelmente, enxaqueca. Fosse como fosse, respondi impávido:
— No, it's not!
Minhas palavras soaram alto, com certa violência, pois me repugnava admitir que aquilo ou qualquer
outra coisa nos meus arredores pudesse ser um handkerchief.
Ela então voltou a fazer uma pergunta. Desta vez, porém, a pergunta foi precedida de um certo olhar em
que havia uma luz de malícia, uma espécie de insinuação, um longínquo toque de desafio. Sua voz era
mais lenta que das outras vezes; não sou completamente ignorante em psicologia feminina, e antes dela
abrir a boca eu já tinha a certeza de que se tratava de uma palavra decisiva.
— Is it an ash-tray?
Uma grande alegria me inundou a alma. Em primeiro lugar porque eu sei o que é um ash-tray: um
ash-tray é um cinzeiro. Em segundo lugar porque, fitando o objeto que ela me apresentava, notei uma
extraordinária semelhança entre ele e um ash-tray. Era um objeto de louça de forma oval, com cerca de 13
centímetros de comprimento.
As bordas eram da altura aproximada de um centímetro, e nelas havia reentrâncias curvas — duas ou três
— na parte superior. Na depressão central, uma espécie de bacia delimitada por essas bordas, havia um
pequeno pedaço de cigarro fumado (uma bagana) e, aqui e ali, cinzas esparsas, além de um palito de
fósforos já riscado. Respondi:
— Yes!
O que sucedeu então foi indescritível. A boa senhora teve o rosto completamente iluminado por onda de
alegria; os olhos brilhavam — vitória! vitória! — e um largo sorriso desabrochou rapidamente nos lábios
havia pouco franzidos pela meditação triste e inquieta. Ergueu-se um pouco da cadeira e não se pôde
impedir de estender o braço e me bater no ombro, ao mesmo tempo que exclamava, muito excitada:
— Very well! Very well!
Sou um homem de natural tímido, e ainda mais no lidar com mulheres. A efusão com que ela festejava
minha vitória me perturbou; tive um susto, senti vergonha e muito orgulho.
Retirei-me imensamente satisfeito daquela primeira aula; andei na rua com passo firme e ao ver, na
vitrine de uma loja,alguns belos cachimbos ingleses, tive mesmo a tentação de comprar um. Certamente
teria entabulado uma longa conversação com o embaixador britânico, se o encontrasse naquele momento.
Eu tiraria o cachimbo da boca e lhe diria:
-- It's not an ash-tray!
E ele na certa ficaria muito satisfeito por ver que eu sabia falar inglês, pois deve ser sempre agradável a
um embaixador ver que sua língua natal começa a ser versada pelas pessoas de boa-fé do país junto a cujo
governo é acreditado.

Maio, 1945.
Fonte:A crônica acima foi extraída do livro Um pé de milho, Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1964, pág. 33.

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