11/11/2010

Carne

"Carne

Já estou aqui dentro desta sala há 4 dias, esperando por uma chance que não virá de poder sair em segurança. Eles não param de andar de um lado para o outro, e a cada momento parecem surgir mais e mais. Acabei de comer o último pacote de biscoitos, só me resta agora uma garrafa de água. Não há mais como adiar. Preciso agir. Terei de sair!

Os canais de televisão pararam de transmitir na noite de ontem, após inúmeros informes que deram os sórdidos detalhes sobre a epidemia para aqueles que nunca ouviram falar de George Romero. Graças à Deus, mais nenhuma pessoa apareceu nas ruas apenas para ser rapidamente devorada por eles.

Não há mais comida. Só uma garrafa d´água. E a sala já começou a cheirar mal. Tenho que sair daqui. Não há nada que posso usar como arma. Nada mesmo. Não consegui dormir, como poderia? Na maior parte do tempo, só fiquei parado, imóvel, tentando não fazer nenhum barulho. Por alguns momentos, tive medo até de respirar.

Será que é verdade? Qual a razão deste pesadelo? Olho lá fora, e eles continuam vagando. Chego a pensar em uma solução. E se eu mordesse eles e os devolvesse à forma humana? Se eles nos transformam, porque não podemos transformá-los também e fazer o processo inverso? Tenho que sair, já não consigo pensar com clareza.

Não consigo e nem quero pensar em minha esposa e meu filho pequeno, que estavam sozinhos em casa quando tudo começou. Resta o consolo de que tudo foi tão rápido que talvez eles não tenham sofrido. Sorte daqueles que pereceram primeiro. Sorte daqueles que não voltaram à este inferno na Terra. Que não estão aqui agora.

Acho que eles sabem que eu estou aqui. Não param de chegar mais e mais. Indo de um lado para o outro. Há uma mercearia do outro lado da rua. Tenho que correr até lá, para onde sem dúvida existe comida. Tenho que arriscar. Faz tempo que não corro, e agora preciso correr por minha vida. Quantos deles estarão lá dentro, me esperando? Tenho que arriscar.

Abro a porta e todos eles voltam-se para mim, buscando alcançar um pouco da minha carne. Eles são lentos, mas são tantos, tenho que chegar logo até a mercearia. Chego até a porta e, desesperado, descubro que ela está trancada. Não tenho um plano B. Não consigo pensar direito. Eles estão por toda parte. Já não posso voltar para meu abrigo anterior.

Penso em desistir, mas algo me faz seguir em frente, correndo com vários deles no meu encalço. Chego à esquina e percebo que estou cercado, tento subir num poste mas um deles arragou-se à minha perna e me derrubou. Estou no chão, sem chances de fugir. Sinto a primeira mordida rasgar meu braço. Sinto minha carne ser violada, minha humanidade ser comprometida. Depois não sinto mais nada.

Olho para baixo e vejo minhas tripas sendo fartamente distribuídas. Mordo a mão de um deles, arranco um pedaço da carne, mas o maldito nem sente e, contrariando minha teoria, não volta à ser humano. Já não tenho pernas. Não sobrou quase nada. Ouço uma mulher gritando e, pelo jeito, eles também, pois resolvem me abandonar, abandonar sua outrora perfeita refeição. Voltem aqui, desgraçados. Ainda há carne. Terminem o serviço. Voltem, voltem, por favor... Volt...

... Carne... Por ali... Carne... Carne..."

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